Foi por uma fresta que a liberdade entrou. Sem pedir licença, o frémito, insurgente, corrompeu a noite da ditadura. As mil e uma noites do regime amadureceram em soberba, mas caíram pela pureza da poesia nas ruas de Lisboa, numa aurora que tardava - que sempre se demorou - mas que se ia adivinhando na alma de alguns. E Portugal dormia. Era tarde. Era noite. Era uma noite como qualquer outra na longa noite da ditadura. Estávamos cansados. Dormíamos.
A palavra escrita, a palavra cantada emergiu do rádio. Músicas e palavras que ficaram no imaginário de todos, mas que poucos escutaram em directo e muitos menos entenderam o real impacto daquelas senhas. A madrugada foi insuflando o caminho para a alvorada, para o despertar, para a aurora de um novo tempo. Mas o país dormia. Cansado, talvez. Uns resignados. Outros sonhavam. Todos repousavam em si, sobre si, sobre este Portugal amordaçado e cansado, sobre perene tristeza e desesperança. Lá fora estava escuro. E estávamos cansados. Esta seria a última noite assumidamente... noite. Um novo Portugal zurzia por entre o postigo que se estava a abrir na derradeira noite da ímpia obscuridade, do torpor que se preparava para se renegar a si próprio e deixar cair a mais longa ditadura europeia do século XX. Os capitães, os soldados, toldados de dúvidas e medos tentariam levar a cabo a tentativa de derrubar o governo de Marcelo Caetano e colocar o ponto final a quase 50 anos de Estado Novo. Sim, esta era a madrugada. Era esta a hora. Era a derradeira noite. Era tempo do medo recolher as garras.
Portugal dormia.
Era tarde.
Estávamos cansados.
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
(Sophia de Mello Breyner)
24 de Abril de 1974. Às 22.55 é emitida a primeira senha que desencadeará a acção militar que levará ao fim do regime. As palavras soaram na noite pela voz de João Paulo Dinis aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa: “Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74 «E Depois do Adeus».
Era o primeiro sinal para o início das operações militares a desencadear pelo Movimento das Forças Armadas.
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz...
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder.
[...]
(Paulo de Carvalho)
Ninguém suspeita. Ninguém sabe. Ninguém poderia saber. Portugal dorme. Cansado.
Madrugada de 25 de Abril de 1974. Meia-noite e vinte. Lê mos que nos estúdios da Rádio Renascença, na Rua Capelo, ao Chiado, Paulo Coelho, ignora os compromissos assumidos pelos seus colegas do programa Limite, e lê anúncios publicitários. Apesar dos sinais desesperados de Manuel Tomás, que se encontra na cabina técnica acompanhado de Carlos Albino, para sair do ar, o radialista prossegue paulatinamente a sua tarefa. Após 19 segundos de aguda tensão, Tomás dá uma “sapatada” na mão do técnico José Videira, provocando o arranque da bobine com a gravação que continha a célebre senha: a canção Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso rasga a noite.
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena
[...]
(Zeca Afonso)
Irreversível, agora.
Portugal dormia. Nos quartéis, porém, ele estava acordado.
Expectativa.
Medo.
E a história serpenteava pelas ruas. A noite consumada era feita de poesia. A poética marcha. Lá fora, na rua, o país avançava no rodado dos blindados. Os heróis anónimos começaram a rasgar espaço nos livros de história.
Amanheceu em Portugal. O país acordou. Ninguém cansado.
Havia gente e cravos na rua.
Bom dia, liberdade.
Bom dia, sonho.
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam
como estas árvores que gritam
em bebedeiras de azul.
[...]
(António Gedeão)
OS VÍCIOS DO SALAZARISMO
Sonegadas as palavras, retraídos os sonhos, freados os ímpetos. Os arquivos remetem-nos para um tempo habitado por estranhos feitos, espúrios métodos, coexistindo nesse hiato de bizarrias várias, o hiato das liberdades. A imprensa teve as rédea demasiado curtas. Jornalistas e directores que ousavam o caminho da afronta depressa eram “referenciados” e pressionados a calarem-se. Nas redacções abundavam as provas cortadas pelos Serviços de Censura, páginas carimbadas a azul e a vermelho. Alguns cortes eram cirúrgicos, amputando nomes proibidos, extirpando factos. Outros carimbos anunciavam o corte integral do texto, profano para o bem de uma nação que se queria mantida na ignorância, como se o dia-a-dia não fosse prova suficiente para quem quisesse ver. Tudo era alvo da atenção dos censores.
Refazer jornais à última hora era uma das ocupações das redacções. Tentar meter notícias sem chamar a atenção da censura era talento que se ia apurando à secretária. Dizer sem o dizer. Saber ler nas entrelinhas foi um exercício que os leitores foram aprumando em ditadura. Era nessas entrelinhas, naquela vírgula, naquele sinónimo e, sobretudo, no que não era escrito, que as notícias se escreviam.
Eram dias de faz-de-conta. Na política, as eleições eram um artifício. Não eram livres. Todos o sabiam. Mas faziam-se e cumpriam-se no faz-de-conta. Ai de alguém que exprimisse o contrário. Basta olhar para um recenseamento eleitoral de 1966 e ver quem eram os eleitos para votar. Mas a prova já tinha sido feita bem antes, quando o general Humberto Delgado afrontou o Salazar, candidatando-se à Presidência da República, contra o candidato do regime, Américo Tomás. As eleições de 1958, sob forte suspeita de fraude, ditaram-lhe a derrota. Seria de esperar algo de distinto? Mas a afronta não foi esquecida. O general foi assassinado por agentes da PIDE em Villanueva del Fresno, Espanha, em 1965.
O país dos brandos costumes e das virtudes propagadas aos ventos tinha terríveis vícios privados na cúpula do regime.
N.F.